CIDADES

A narrativa abaixo li - no Besta Fubana - com os olhos da saudade dos meus tempos de infância em Itapoan aqui em Salvador ou em Itaberaba onde meus pais tinham uma fazenda e onde cresci conhecendo gente simples e de caráter, ouvindo histórias que encantavam...

Espero que se encantem como eu me encantei...

Por Jesus de Rita de Miúdo

Bombom
Sentei-me em frente ao monitor e fiquei observando essa fotografia. Foram embora segundos, minutos e, em pouco tempo, uma hora inteira havia se passado. 



E eu aqui, sentado observando essa foto. Dezenas de lembranças vieram desse homem, num arroubo íntimo de sentimentos difíceis de serem descritos. Eu gostava muitíssimo dessa criatura. 

Era um frequentador assíduo da casa de Papai, para acompanharmos juntos os jogos de futebol pela televisão. No intervalo, um cafezinho na cozinha. “É de lei”, dizia sorrindo com aquele jeito espontâneo, enquanto preparava um boró, para fumar na calçada. 

Eu gostava de ficar ouvindo as suas histórias, e exultava mesmo era quando ele próprio sorria daquilo que narrava. 

Também fiz parte da legião de meninos disputando um de seus ‘carros’, na hora de ir deixar o lote na ‘garagem’, depois de um dia árduo colocando areia nas construções. Areia trazida das ribeiras do Rio Acauã, transportada nas caçambas de madeira dos seus carros. Pela rua ia ficando aquele rastro fino de areia caída das brechas abertas da madeira nos encontros dos fundos das peças.

Para cada carro, um nome próprio de algum craque da Seleção Brasileira de Futebol. “Esse é o Edinho, esse aqui é Dr. Sócrates, o Éda (Éder), o Leandro e o Zico, que tem esse nome, porquê quebrou a perna atolado na areia do rio”, dizia apresentando orgulhosamente cada um deles. Depois trocou uns, e vieram o Casagrande, o Careca e o Júnior.

Os carros eram seus jumentos. Tratava esses animais como pessoas. Eu não me lembro de uma vez sequer haver presenciado ele os maltratando sob qualquer forma. Nem usava chicotes, ou quaisquer outros tipos de ferramenta para açoite. Gostava de dizer “olhe o alinhamento”, e parece mesmo que os animais entendiam e seguiam numa fileira bem organizada, com ele na frente sobre o Zico, cantando algum samba-canção. Gostava de sambas. Samba de raiz.

“Não suba no roxim, que ele morde”, advertia ao moleque estreando na turma de motoristas manobristas, e que se aproximava do Careca.

Quando era noite vinha se sentar na calçada de Zé Pereira, em frente lá de casa, para papear. Muitas vezes eu ficava ali, só ouvindo as estórias que pareciam criadas por ambos para a minha diversão. Nessas horas eu admirava o sapato lustroso, a calça de vincos fortes de tão engomada e a camisa sempre muito bem passada.

Na juventude foi um craque no futebol, e ficou conhecido pelo costume de se jogar ao chão para cabecear as bolas mais baixas, adiante dele, se aventurando no famoso peixinho.

Viveu rodeado de meninos, sempre sorridente entre os seus carros e os garotos da sua simpatia, que eram todos que se aproximavam dele. 

Um dia pela manhã, enquanto ele colocava solitário as caçambas nos carros, eu fui chegando devagar e ele começou a cantar: “Eu daria tudo que eu tivesse, pra voltar aos dias de criança, eu não sei pra quê que a gente cresce, se não sai da gente essa lembrança…” Aí, eu comecei a acompanhá-lo: “Aos domingos missa na matriz, da cidadezinha onde eu nasci. Ah! Meu Deus, eu era tão feliz…

Quando terminamos juntos toda a canção, ele olhou para mim, sorriu e disse: “Isso é Ataulfo Alves, menino. Onde aprendeu?”

Respondi que Papai tinha o disco. E ele profetizou: “Um dia você ainda cantará isso com uma saudade danada.”

E aqui estou eu solfejando num assobio baixinho e triste a música, sentindo uma saudade sem tamanho dos meus dias de criança, quando andava nos jumentos de Bombom de Beiê, cada um com o seu nome de craque.

Dele, nessa saudade embaçando os meus olhos, digo: nenhum apelido caberia tão bem numa criatura simples e humilde. Bombom era duplamente bom.

POLITICA












Página inicial